O dia 17 de dezembro de 2014 é um novo marco nas relações internacionais nas Américas
Às 15h de Brasília, os governos de Cuba e dos Estados Unidos anunciaram, simultaneamente, um acordo que restabelece as relações diplomáticas entre os dois países. Como consequências imediatas, há uma troca de prisioneiros – na qual são libertados os três antiterroristas cubanos presos há 16 anos nos Estados Unidos – e a possibilidade do fim do bloqueio econômico contra Cuba. Mas o que isso representa de fato?
A inflexão é grande, isso está claro, mas o quão profunda poderá ser só saberemos de fato nos próximos anos. Há aí uma grande conquista de Cuba – de seu governo e de seu povo – e uma grande vitória da solidariedade internacional. Ao menos politicamente, o significado simbólico do acordo é um avanço no respeito à soberania cubana, e isso é fundamental. Independente de se concordar ou não com as linhas políticas, sociais e econômicas da Revolução Cubana e os rumos que esse processo tomou e vem tomando, o respeito à soberania e à autonomia dos povos é princípio básico para relações internacionais minimamente saudáveis. Se esse respeito irá consolidar-se, é outra história.
Ações contrarrevolucionárias
Desde a chegada ao poder dos revolucionários cubanos, foram inúmeros os ataques terroristas contra Cuba. A maioria deles partiu dos Estados Unidos, ou apoiados pelo governo estadunidense ou ao menos encobertos por ele – o que dá quase no mesmo. O mais famoso desses ataques foi uma agressão direta do governo estadunidense, através da CIA e de mercenários, na tentativa de invasão de Cuba por Playa Girón, frustrada pela reação do povo cubano organizado e armado. Entre os ataques mais violentos porém menos perceptíveis de forma imediata, está o bloqueio comercial estabelecido pelos Estados Unidos contra a ilha vizinha desde 1960.
Esse bloqueio, constantemente atualizado por novas leis estadunidenses, impede não apenas que empresas sediadas nos Estados Unidos comercializem com Cuba, mas também procura evitar ao máximo que empresas estrangeiras mantenham qualquer tipo de relação com a ilha ou com os produtos ali produzidos. Dificulta inclusive a entrada de alimentos, remédios e equipamentos necessários à infraestrutura básica do país e da população. A Assembleia Geral da ONU já solicitou mais de 20 vezes o fim do bloqueio, que agora parece mais próximo do que nunca: em seu discurso neste histórico dia 17, o presidente dos EUA Barack Obama prometeu estimular um “debate sério” no Congresso sobre o fim do bloqueio. Algumas ações já começam a reduzir as cercas do bloqueio: dentre as medidas anunciadas por Obama, estão a facilitação de viagens de estadunidenses a Cuba, a autorização de vendas e exportações de bens e serviços dos EUA para Cuba, a autorização para estadunidenses importarem bens de até US$ 400 de Cuba, e o início de novos esforços para melhorar o acesso de Cuba a telecomunicação e internet.
Como dito no início deste texto, a base do avanço contra o bloqueio é o restabelecimento das relações diplomáticas, rompidas desde 1961. Serão abertas embaixadas nos dois países, e, assim, amplia-se a possibilidade de diálogo. Foi nesse sentido a fala do presidente cubano Raúl Castro: “Devemos aprender a arte de conviver de forma civilizada com nossas diferenças”, disse, e reafirmou a necessidade do fim do bloqueio.
Los Cinco Volveran
O primeiro resultado prático e visível da mudança nas relações entre os dois países é o atendimento de uma demanda do povo cubano que já durava 16 anos: a libertação dos três antiterroristas presos nos Estados Unidos. São os remanescentes dos “Cinco Heróis”, cinco agentes cubanos que se infiltraram em organizações terroristas sediadas em Miami para tentar impedir novos ataques contra Cuba. Acabaram presos, julgados em uma situação completamente desfavorável, e condenados por espionagem – de forma absolutamente injusta e influenciada pelo clamor da população de origem cubana de Miami, vinculada à contrarrevolução.
Depois de forte mobilização internacional em defesa da libertação dos Cinco – o que só poderia ocorrer com uma decisão de Obama – a troca por Alan Gross (estadunidense preso em Cuba) levou à soltura dos três que continuavam presos – Gerardo Hernández Nordelo (condenado a duas prisões perpétuas e 15 anos), Ramón Labañino Salazar (uma prisão perpétua e 18 anos) e Antônio Guerrero Rodríguez (uma prisão perpétua e 10 anos). Essa é uma grande vitória da diplomacia cubana e, sobretudo, da solidariedade internacional. A confiança e a previsão de Fidel Castro se confirmaram. Em discurso no ano 2001, o ex-presidente cubano garantiu: “La inocencia de esos patriotas es total. Solo les digo una cosa: volverán”.
Fim do bloqueio é a nova estratégia
O afrouxamento do bloqueio e as sinalizações sobre o seu fim, combinados à libertação de Gerardo, Ramón e Antônio, são vitórias de Cuba, vitórias da soberania do povo cubano, vitórias do empenho e da retidão do governo cubano e da solidariedade internacional. Ao mesmo tempo, não há que se pensar que o governo de Barack Obama transmutou-se em um governo respeitoso aos direitos humanos e aos direitos das nações, tampouco que os Estados Unidos, enquanto Estado e enquanto sociedade, dá uma guinada rumo ao respeito à soberania alheia. É preciso atenção aos próximos movimentos e às razões da mudança na forma de se relacionar com Cuba. Em seu discurso, Obama deixou claro que segue descontente com os últimos 55 anos da Cuba, mas que os Estados Unidos devem mudar de estratégia se querem o fim da Revolução. O bloqueio foi uma estratégia que durou 43 anos e não funcionou; seu encerramento é justamente a nova estratégia.
A tendência é que, conforme o bloqueio vá caindo, o capitalismo seja despejado em uma Cuba com cada vez mais dificuldades para manter-se em confronto com ele. O processo de abertura ao capital, chamado de forma otimista e/ou eufemística de “atualização econômica” já vem acontecendo em Cuba desde que o país se viu em profundas dificuldades econômicas após o fim da União Soviética. Com a falta de um parceiro comercial e político de quem, é verdade, tinha se tornado bastante dependente, Cuba teve que recuar na construção do socialismo, e começou, principalmente a partir da segunda metade da década de 1990, a abrir espaços para a entrada do capital internacional e para o nascimento de um novo capital nacional privado. Ao mesmo tempo, o turismo começou a crescer, tornando-se a principal fonte de renda de boa parte dos cubanos e do próprio Estado. Tanto o turismo quanto a abertura à iniciativa privada trouxeram problemas: uma pequena desigualdade aflorou, por um lado, e, por outro, o deslumbramento da experiência de troca com os privilegiados que podiam viajar a Cuba levava (e ainda leva) a uma visão distorcida sobre a realidade dos países capitalistas.
Socialismo ou a morte da Revolução
Em Cuba, há pouco – por causa do bloqueio, dos equívocos econômicos, e da própria história de exploração do país pela Europa e pelos Estados Unidos –, mas não há fome, não há miséria, todos têm acesso à Saúde e Educação de qualidade. Porém, com as novelas brasileiras mostrando o Leblon nas televisões cubanas, com os turistas endinheirados mostrando os poucos vencedores de países com muitos derrotados, e com a ascensão econômica de alguns cubanos através da iniciativa privada, cria-se uma confusão de compreensão sobre a realidade de Cuba em relação aos outros países, mesmo que os cubanos estejam em níveis de politização bastante superior aos brasileiros, por exemplo. É nesse processo, de despejo de capital e de turistas endinheirados sobre Cuba, que o governo estadunidense parece apostar agora para criar novas dificuldades. Pode cair o estrangulamento econômico, mas a tendência é que seja substituído por um ataque direto à consciência socialista do povo cubano. A Revolução está preparada para isso? Talvez. O certo é que há erros que podem custar caro nesse processo. Embora seja um equívoco – quando não desonestidade – afirmar que em Cuba há uma ditadura – há eleições desde a base, organizações fortes e representativas, participação política constante –, de fato alguns erros históricos ainda enfraquecem a possibilidade de usufruto pleno do direito à política – é o caso da ausência de uma mídia descentralizada e comunitária, por exemplo. Mesmo assim, as organizações cubanas são vigorosas e, especialmente a partir dos Centros de Defesa da Revolução (CDRs), politizam ao mesmo tempo em que constroem o país através das mãos da maioria.
Em uma perspectiva histórica, 50 anos é pouco tempo. A Revolução Cubana nasceu antes, no ataque liderado por Fidel Castro ao Quartel Moncada, mas ainda assim engatinha. Embora em 1959 o povo cubano tenha conquistado o Estado e, em seguida, se apoderado de seu próprio destino e passado a controlar a economia do país, circunstâncias internas e externas levaram a retrocessos, especialmente na área econômica. Com a dinâmica histórica internacional, foi prejudicado pelas readequações e consequentes vitórias do capitalismo e, assim, das ralas elites mundiais. Depois de avanços rápidos seguidos de retrocessos, Cuba se vê hoje em fortes contradições econômicas. O socialismo derrapa e procura manter-se em pé. A possibilidade de fim do bloqueio econômico abre a possibilidade de remobilização econômica, que pode servir tanto ao avanço do capitalismo sobre Cuba quanto à retomada do fortalecimento da economia socialista, especialmente através de parceiros políticos e econômicos contumazes que terão maior facilidade em negociar com a ilha. Pode, assim, nascer um novo estímulo a uma economia soberana, popular e pujante. Com a retomada das relações com os Estados Unidos e o que isso sinaliza, não há mais como ficar parado: é avançar a passos rápidos para a retomada e refortalecimento do projeto socialista, com aprofundamento da democracia socialista e recuperação do poder econômico não-privado; ou ser invadido pelos tentáculos ideológicos e pelo canto da sereia do capitalismo.
Alexandre Haubrich
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