quinta-feira, 25 de agosto de 2011

50 anos de Legalidade: entrevista com Tarso Genro

“Resistência em 61 criou uma força reformista e democrática para o país”

Para o governador Tarso Genro “quem simbolizou o movimento foi o Leonel Brizola, além do PTB e o PCB”
Tarso Genro: "Em Santa Maria, havia, na prática, uma espécie de aliança estudantil-operária bastante forte" l Foto:Caroline Bicocchi/Palácio Piratini

Lorena Paim e Nubia Silveira

O governador Tarso Genro recebeu o Sul21 em seu gabinete de trabalho na ala residencial do Palácio Piratini. De início, como acontece com a maioria das pessoas, confundiu 1961 com 1964. Recuperou-se imediatamente, rindo da confusão. Ao ouvir as perguntas, anotava os pontos, que considerava importante ressaltar, no canto de um entre tantos papeis colocados à sua frente. Os assessores esperavam para levá-lo ao próximo compromisso.
Tarso fez questão de dizer que, hoje, ao olhar para o passado, acha que Jango fez bem em não resistir ao golpe de 64. A resistência, vitoriosa em 61, teria acabado em genocídio três anos depois.
Sul21 — Como o senhor ficou sabendo do movimento da Legalidade?
Tarso Genro —
Eu não tinha completado ainda 15 anos de idade, mas acompanhei como militante da União Santa-mariense de Estudantes, já participava do movimento estudantil secundarista. Nós nos mobilizamos, tanto secundaristas como universitários, contra aquilo que nós supúnhamos, aliás, corretamente, que era um golpe militar. Naquela época existia um movimento reformista muito forte que vai ser capitaneado pelo presidente João Goulart, o qual é deposto em 64. Na Legalidade, nossa grande referência política era o governador Leonel Brizola, que mobilizou o Rio Grande do Sul e conseguiu criar um contraponto forte ao movimento golpista. Isso possibilitou a vinda do presidente João Goulart e a normalização política do país até finalmente a derrubada do presidente Jango.
"Nossa grande referência política era o governador Leonel Brizolal", afirma Tarso l Foto: Acervo Fotográfico do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa
Sul21 — Como foi a mobilização de Santa Maria, em 1961? Havia manifestações de rua?
Tarso
Santa Maria era, naquela oportunidade, um polo ferroviário extraordinário. E a classe operária santa-mariense era representada, majoritariamente, por ferroviários, em duas grandes oficinas. A do KM 13, a maior, reunia em torno de 1.300 a 1.400 trabalhadores. E o Partido Comunista Brasileiro era a força hegemônica. Havia, na prática, uma espécie de aliança estudantil-operária bastante forte, simbolizada pelos setores de esquerda do movimento estudantil. Isso gerou mobilizações de rua, particularmente capitaneadas pelos ferroviários. Mas a grande mobilização que ocorreu lá foi através das rádios, que tiveram papel muito importante, não só pela Cadeia da Legalidade formada pelo Brizola, mas também porque as emissoras locais foram deslocadas para apoiar o movimento de resistência, já que naquela oportunidade não havia condições para golpe. Majoritariamente, a sociedade civil apoiou o movimento legalista em todo o estado. As rádios estavam engajadas na Cadeia e também seus funcionários, diretores; aqueles que tinham simpatia pelo movimento golpista não tinham coragem para se manifestar.

Sul21 — O senhor destacou Brizola como figura de referência. Nesse movimento haveria outras pessoas importantes?
Tarso
Para nós, em Santa Maria, naquela época, as lideranças estaduais eram muito secundarizadas em relação à figura forte do governador. Então, quem simbolizou o movimento de resistência foi o Leonel Brizola, além do PTB e o PCB. Os líderes em Santa Maria do PCB, que eram diretores dos sindicatos de ferroviários, tiveram expressão bastante grande. Mas, sem dúvida, a figura central era Brizola em todo o estado e, em Santa Maria, ele era a afirmação dessa referência.

“A partir a queda de Vargas, temos uma grande transição, que nos leva ao golpe de 64″

Sul 21– No Brasil, de 1945 a 1964, houve três tentativas de golpe, sendo que três não tiveram sucesso e a quarta, em 64, teve. O que marcava a política naquela época que possibilitou essas tentativas de golpe, lideradas pelos militares?
Tarso Nós temos uma grande transição, a partir da queda de Getúlio Vargas, que nos leva ao golpe de 64. Naquela oportunidade, todos os países da América Latina, sem exceção, estavam envolvidos em movimentos reformistas, com maior ou menor radicalidade, a partir de 1946, e com poucas expressões armadas. Eram mais movimentos reformistas inspirados numa social-democracia tardia que aqui adquiria formas populistas, seja através do (argentino Domingo) Perón, ou através de lideranças como Jacobo Arbenz na Guatemala (derubado por um golpe). Então, esse período 1946-1964, aqui no Brasil, é de reorganização das classes dominantes brasileiras. Elas transitam, de uma força extraordinária no setor oligárquico, mais tradicionalista, vinculado à propriedade da terra, em direção a uma sociedade mais organicamente capitalista, com o surgimento de classes empresariais industriais. Essas se dividem nesse período em setores bem distintos (porque era antes do fenômeno da globalização financeira): a grande burguesia nacional, parte dela muito simpática aos movimentos de política externa independente do Brasil, e os setores que eram já eram associados ou subsidiados pelas grandes empresas monopolistas do império, seja no setor de produção de eletricidade ou na parte da produção industrial mais moderna. Essa divisão fica nítida no golpe de 64: a chamada burguesia nacional — o pai do empresário Ermírio de Moraes era um exemplo — que apoiava os governos democráticos, tanto de João Goulart quanto de JK. E outros setores constituíam o que se chamava de suporte social interno do imperialismo, tanto empresas imperiais propriamente quanto as que iniciavam o processo de associação. Isso é o que se desata no golpe de 64. Um golpe pró-imperialista, coordenado pelos Estados Unidos, que obstaculizou um projeto nacional desenvolvimentista de corte popular.
Tarso: "Na América Latina, havia movimentos reformistas inspirados numa social-democracia tardia que aqui adquiria formas populistas" l Foto: Caroline Bicocchi/Palácio Piratini
Mas, depois de 64, nós temos um estranho fenômeno: a organização do setor industrial moderno nacional que se vincula a determinados setores militares e tenta fazer um projeto nacional desenvolvimentista pela direita autoritária. Isso se revela naquela visão “Brasil potência grande”, que tinha certas contradições com o império, como o movimento das 200 milhas, de proteção e soberania nacional. Mas, de fato, o grande conflito que leva ao golpe é o das forças democráticas nacionalistas com o setor vinculado às pretensões de dominação imperial em toda a América Latina.
Sul 21 — Em 1961 houve resistência popular e o golpe foi evitado. O que houve nesses três anos que permitiu o golpe de 64? Houve desmobilização das forças populares?
Tarso
Alguns fatores são nítidos nesse processo. Primeiro, a aceleração da Guerra Fria, um conflito entre os dois grandes caminhos: o que tinha referência a União Soviética e o caminho orientado pelo Departamento do Estado dos EUA, que tinha na América Latina um território de grande atenção. O segundo fator é que, internamente, o governo do presidente João Goulart não organizou o suporte político programático no Congresso que tivesse densidade e repercussão na organização popular. Foi um governo mais centrista do que de esquerda, o qual tinha à testa um presidente sinceramente a favor as reformas, mas que era limitado na organização política de massas e na organização de uma base parlamentar que lhe desse sustentação. As forças econômicas e sociais que teriam condições de dar suporte ao seu projeto reformista não estavam suficientemente maduras para se articular. E o terceiro aspecto é que a dissidência interna dentro do campo popular foi acelerada de maneira artificial. Eu não diria mal-intencionada, mas artificial, como a organização dos Grupos dos 11, que foi uma nobre intenção do governador Brizola, correta do ponto de vista estratégico, mas ela foi apanhada pelas Forças Armadas como uma provocação, como uma estrutura paramilitar que, de efetivamente, não era. Isso ocasionou uma união do centro com a direita que permitiu uma coalizão de forças muito grande para promover o golpe militar. E contrariamente ao que nos pensávamos na oportunidade, que deveria ocorrer uma resistência militar em 64, hoje penso que a resistência militar, se ocorresse, causaria mais danos para o campo popular democrático, porque seria feito um genocídio contra a população e as forças de esquerda, como foi feito no golpe na Indonésia, com o apoio das forças americanas. Hoje, eu penso que foi bom naquela época que o pior dos caminhos que resultou para o Brasil, que foi o caminho do golpe, não tivesse resistência militar. Porque a chacina que ocorreu na Indonésia, onde mataram 500 mil comunistas, ocorreria aqui sem nenhuma vacilação. A direita brasileira estava violentamente acelerada e o império estava pronto para intervir.

“Em 64, as forças populares de esquerda estavam completamente desorganizadas”

"O governo do presidente João Goulart não organizou o suporte político programático no Congresso que tivesse densidade e repercussão na organização popular" l Foto: Acervo Fotográfico do Museu de Comunicação
Sul21 – O senhor diria, então, que a atitude de Jango ao aceitar o parlamentarismo em 61, porque não queria ver sangue correndo, foi correta?
Tarso
Em 64 foi correta. Em 61, não sei se foi correta. Difícil de julgar hoje, porque havia uma mobilização popular intensa e, se o Jango não aceitasse o parlamentarismo, poderia ter havido um tipo de enfrentamento político e quem sabe até de desforço militar que proporcionasse um resultado favorável para a manutenção da Constituição. As forças ali eram muito amplas, de defesa da Constituição e da democracia. Eu não garanto que fosse a melhor solução. Mas em 64 acho que as forças populares de esquerda estavam completamente desorganizadas. As da direita, apoiadas diretamente pelo império, sem vacilação em fazer chacinas, como foram feitas em diversos momentos na América Latina e fora daqui. Isso ocorreria fatalmente aqui no Brasil. É mais provável que o recuo do presidente João Goulart fosse feito com um exame adequado de correlação de forças daquele momento.

Sul21 — O que o movimento da Legalidade deixou de herança para a política brasileira? O que restou no momento atual?
Tarso
Possibilitou um movimento nacional reformista que teve uma expressão grande dali para frente. Marcou positivamente o governo João Goulart que, ao contrário do que se diz, que teria caído pela corrupção, era reformista, avançado. Tinha corrupção, mas em dose menor do que os chamados governos revolucionários depois. Mas o governo Jango não caiu pela corrupção, mas porque era de centro-esquerda, reformista, ou centrista-progressista. A resistência da Legalidade criou uma força reformista e democrática para o país, que depois se refletiu profundamente no movimento dos autênticos do MDB, o qual teve tanta influência na redemocratização do país.
"Mas o governo Jango não caiu pela corrupção, mas porque era de centro-esquerda, reformista" l Foto:Caroline Bicocchi/Palácio Piratini
Sul21– O senhor afirma que o governo de Jango foi reformista. Alguns o denominam populista. Outros, trabalhista. Quais as diferenças entre estes qualificativos?
Tarso
Populismo, um fenômeno não apenas latino-americano, tem expressões políticas bem distintas aqui na América Latina. Você pega o governo populista como era o do (Victor Haya) De la Torre, no Peru, na sua versão de direita, o populismo do (peruano Alberto) Fujimori, você pega um governo populista tanto à direita quanto à esquerda, como os governos do Perón, na Argentina, e Getúlio Vargas aqui. O juízo sobre um governo populista é sempre elitista. Ele é muito mais um fenômeno político de amadurecimento das massas populares no sentido do avanço da presença do povo na cena pública e também reformista positivamente, como foi a parte do governo Vargas que deixou legado positivo na formação do Estado, das leis sociais e da defesa de um projeto nacional. Pode haver doutrinas diferentes, mais corporativas, como o peronismo, mais voltadas para o nacionalismo revolucionário, à esquerda, e movimentos populistas direitistas que são sedutores das massas para jogar contra o progresso. Então, o populismo não é um mal em si mesmo. É um fenômeno a ser compreendido.

“A Legalidade e a Revolução Farroupilha foram movimentos vitoriosos que deixaram legados para todo o país”

Sul21— Segundo algumas análises, os dois grandes movimentos do Rio Grande do Sul – a Revolução Farroupilha e a Legalidade –, a rigor, representariam derrotas, pois os objetivos não teriam sido plenamente alcançados. O senhor considera que foram derrotas?
Tarso
Se for sob uma ótica regionalista, de separar do país, sim. Mas se identificar o RS com um projeto nacional, ao contrário, foram movimentos vitoriosos que deixaram legados para todo o país, como a resistência em 61 ou a Revolução Farroupilha, que integra o RS na federação. Compare as revoluções com a forma com que SP se identificou com o país. Os movimentos paulistas foram quase “secessionista”, como a revolução de 1932, contra uma visão de um país integrado nacionalmente a partir de uma base popular nacional. Não creio que o nosso movimento fosse derrotado. Só com esta curta visão de que o RS tem essa identidade, ou um futuro fora da identidade do Brasil, o que eu não acredito. O RS ainda é um estado subsidiário no país, no sentido de que as grandes decisões econômicas pelo poder central têm maior influência de São Paulo do que do resto. Isso não é por maldade ou esquecimento de algum presidente com o RS. Pelo contrário, o RS nunca teve tanta atenção do poder central como nos governos do presidente Lula. Mas você vê em que estado se dá a política para enfrentar a crise da globalização, do subprime em particular, se dá através dos subsídios às grandes indústrias paulistas, o carro-chefe da economia nacional. Então, o RS não é um estado de primeira linha na influência nas grandes decisões econômicas e políticas. Esta situação tem melhorado, nos últimos oito anos com o presidente Lula, melhora com a presidenta Dilma, mas estamos longe de ter a força tão expressiva que têm as classes paulistas sobre as decisões de Estado. Estamos longe disto. Nos últimos governos, houve uma espécie de retraimento político do Rio Grande do Sul, que nos colocou no cenário nacional como uma força política incapaz de interferir.
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