A
importância da advocacia criminal é diretamente proporcional à
tendência repressiva do Estado. Nunca o esforço do advogado criminalista
foi tão importante como agora. É o que nos revela o balanço crítico dos
acontecimentos que marcaram a vida do Direito Penal, neste ano que
passou.
Desde que a democracia suplantou o regime de exceção, em
nenhum momento se exigiu tanto das pessoas que, no cumprimento de um
dever de ofício, dão voz ao nosso direito de defesa. Mas é na firmeza da
atuação profissional desses defensores públicos e privados que a
Constituição deposita a esperança de realização do ideal de uma
liberdade efetivamente igual para todos.
Se em 2012 acentuou-se a
tendência de vigiar e punir, o ano que se descortina convida a
comunidade jurídica a participar do debate público e a defender, com
redobrada energia, os fundamentos humanos do Estado de Direito. O
advogado criminalista é, antes de tudo, um cidadão. Agora é convocado a
exercer ativamente a sua cidadania para evitar uma degeneração
autoritária de nossas práticas penais, para além da luta cotidiana no
processo judicial.
Não é de hoje que o direito de defesa vem sendo
arrastado pela vaga repressiva que embala a sociedade brasileira. À
sombra da legítima expectativa republicana de responsabilização, viceja
um sentimento de desprezo pelos direitos e garantias fundamentais. O
“slogan” do combate à impunidade a qualquer custo, quando exaltado pelo
clamor de uma opinião popular que não conhece nuances, chega a agredir
até mesmo o legítimo exercício da “liberdade de defender a liberdade”,
função precípua do advogado criminalista.
O papel social dos
advogados, que a Constituição julga indispensável, vem sendo esquecido.
Não é raro vê-los atacados no legítimo exercício de sua profissão. Uns
têm a palavra cassada pela intolerância à divergência inerente à
dialética processual. Outros são ameaçados injustamente de prisão, pela
força que não consegue se justificar pela inteligência das razões
jurídicas. Nada disso é estranho à prática da advocacia.
Ocorre
que, em 2012, a tendência repressiva passou dos limites. Ameaças ao
exercício da advocacia levaram ao extremo a “incompreensão” sobre o seu
papel social numa sociedade democrática. Alguns episódios dos últimos
meses desafiaram os mais caros postulados da defesa criminal. Refletir
sobre as águas turbulentas que passaram é fundamental para orientar a
ação jurídica e política que tomará corpo no caudal do ano que vem - em
prol da moderação dos excessos de regulação jurídica da vida social.
Um
desses diabólicos redemoinhos nos surpreendeu em agosto, com a
pretendida supressão do habeas corpus substitutivo. A Primeira Turma do
STF considerou inadequado empregar a mais nobre ação constitucional em
lugar do recurso ordinário. O precedente repercutiu de imediato nos
tribunais inferiores, marcando um perigoso ponto de inflexão na nossa
jurisprudência mais tradicional.
Nenhum dos argumentos
apresentados mostrou-se apto a restringir o alcance desse instrumento
fundamental de proteção da liberdade. Ao contrário, revelaram uma
finalidade pragmática de limpeza de prateleiras dos tribunais. A guinada
subordinou a proteção da liberdade a critérios utilitários, como se
conveniências administrativas pudessem se sobrepor às rigorosas
exigências de garantia do direito fundamental.
O habeas corpus foi
forjado em décadas de experiência na contenção de abusos de poder. A
Constituição indicou que sua aplicação é ampla, abolindo as restrições
outrora impostas pelo regime de exceção. Abriu caminho para que a
jurisprudência reafirmasse a primazia do valor da liberdade.
O
posicionamento dominante na época do regime autocrático, todavia,
ressurge nos dias de hoje. Em pleno vigor da democracia, o retrocesso
aparece sob o singelo pretexto de desafogar tribunais.
Porém, a
abolição do habeas substitutivo dificultará a reparação do
constrangimento ilegal. Hoje, não são poucas as ordens de libertação
concedidas pelo Supremo, evidenciando a grande quantidade de
ilegalidades praticadas e não corrigidas. Por isso, a sua supressão
perpetuará inúmeros abusos.
O recurso ordinário, embora previsto
constitucionalmente, não é tão eficaz como o habeas para coibir o
excesso de poder. A começar por suas formalidades, que são muito mais
burocráticas se comparadas às do remédio constitucional. Convém não
esquecer que a utilização deste como via alternativa para reparação
urgente de situações excepcionais foi fruto de uma necessidade do
cidadão, ao contrário da sua pretendida eliminação.
A recente
modificação da Lei de Lavagem de Dinheiro também abriu um novo flanco
para os abusos. O texto impreciso expõe o legítimo exercício
profissional a interpretações excessivas. Por trás da séria discussão
sobre os deveres profissionais na prevenção da lavagem de dinheiro,
esconde-se muitas vezes a vontade de arranhar o direito de defesa dos
acusados.
Há quem acuse o advogado de cometer um ilícito, quando
aceita honorários de alguém que responde a processo por suposto
enriquecimento criminoso. O claro intuito desse arbítrio é evitar que os
réus escolham livremente seus advogados. Restringe-se a amplitude da
defesa atacando os profissionais que, “por presunção de culpabilidade”,
recebem “honorários maculados”, mesmo que prestem serviços públicos e
efetivos.
Em afronta à própria essência da advocacia e em violação
ao sigilo profissional e à presunção de inocência, acaba-se criando uma
verdadeira sociedade de lobos, na qual todos desconfiam de todos. Para
alguns, o advogado deveria julgar e condenar seus próprios clientes.
Diante de qualquer atividade “suspeita”, deveria delatá-los, sob pena de
participar ele mesmo do crime de lavagem de dinheiro supostamente
praticado por quem procurou o seu indispensável auxílio profissional.
Convém
lembrar que o advogado atende e defende com lealdade quem lhe confia a
responsabilidade de funcionar como o porta-voz de seu legítimo
interesse. Não deve emitir, ou mesmo considerar, sua própria opinião
sobre a conduta examinada, mantendo um distanciamento crítico em relação
ao relato que lhe é apresentado.
Atentos à criminalidade que se
sofistica para dar aparência de licitude a recursos obtidos de forma
criminosa, nunca fomos contrários à discussão sobre ajustes nos deveres
profissionais de algumas atividades reguladas. Contudo, a nova situação
não pode servir de desculpa para proliferação de um dever geral de
delação ou para devassar conteúdos legitimamente protegidos pelo sigilo
profissional.
A advocacia criminal pauta-se pela confiança que o
cliente deposita no seu defensor, colocando em suas mãos o bem que lhe é
mais caro: sua própria liberdade.
Outro desafio contemporâneo à
advocacia é a confusão entre o advogado e seu cliente. O preconceito é
tão antigo quanto a nossa profissão. O que muda é o grau de consciência
social que uma determinada época tem a respeito do valor do devido
processo legal. No início do ano, ao defender um de meus clientes, sofri
essa odiosa discriminação.
Na ditadura, os defensores da
liberdade corríamos riscos e perigos pessoais ao questionar o valor
jurídico dos atos de exceção. Na vigência do regime democrático, o
pensamento autoritário encontrou na velha confusão entre advogado e
cliente um meio de suprimir a liberdade com a qual ainda não se
acostumou a conviver. A ignorância e a má-fé sugerem que ou o advogado
defende um réu inocente ou ele é cúmplice do suposto criminoso.
Nada
mais impróprio. A culpa só pode ser firmada depois do devido processo
legal. Nunca antes. É um retrocesso colocar em questão esse dogma do
Direito conquistado pela modernidade. Enquanto a confusão persistir,
devemos repetir sem descanso que o advogado fala ao lado e em nome do
réu num processo penal, zelando para que seja tratado como um ser humano
digno de seus direitos constitucionais.
A Reforma do Código Penal
também é sintomática dessa tendência repressiva. Elaborada por notáveis
juristas e enviada em junho para o Congresso, importa conceitos do
direito estrangeiro, sem a necessária adaptação à nossa realidade
jurídica. Outros institutos essenciais, como o livramento condicional,
são suprimidos. Além disso, eleva as penas corporais para diversos
delitos e deixa passar a oportunidade de corrigir falhas técnicas já de
todos conhecidas.
Outro sinal dos tempos é a inovação da
jurisprudência superior na interpretação de alguns tipos penais, bem
como a mudança de postulados do Processo Penal. Assistimos a um
retrocesso de décadas de sedimentação de um Direito Penal mais atento
aos direitos e garantias individuais. Quando se trata de protegê-los,
não pode haver hesitações. Rompidos os tradicionais diques de contenção,
remanesce o problema de como prevenir o abuso do “guarda da esquina”,
como diria um velho político mineiro, às voltas com histórico desvio de
rota na direção da repressão sem freios.
Também notamos uma
tendência a tornar relativo o valor da prova necessária à condenação
criminal, neste ano “bastante atípico”. Quando juízes se deixam
influenciar pela “presunção de culpabilidade”, são tentados a aceitar
apenas “indícios”, no lugar de prova concreta produzida sob
contraditório. Como se coubesse à defesa provar a inocência do réu! A
disciplina da persecução penal não pode ser colonizada por uma lógica
estranha, simplesmente para facilitar condenações, nesse momento de
reforço da autoridade estatal, sem contrapartida no aperfeiçoamento dos
mecanismos que controlam o seu abuso.
A tendência à inversão do
ônus da prova no processo penal também coloca em questão a tradicional
ideia do “in dubio pro reo”, diante da proliferação de “presunções
objetivas de autoria”. Tampouco a dosimetria da pena pode ser uma “conta
de chegada”.
Quanto mais excepcionais os meios, menos legítimos
os fins alcançados pela persecução inspirada pelo ideal jacobino da
“salvação nacional”. Tempos modernos são esses em que nós vivemos. Em
vez de apontar para o futuro, retrocedem nas conquistas civilizatórias
do Estado Democrático de Direito.
Nesses momentos tormentosos, é
saudável revisitar os cânones da nossa profissão. Como ensinava Rui
Barbosa, se o réu tiver uma migalha de direito, o advogado tem o dever
profissional de buscá-la. Independentemente do seu juízo pessoal ou da
opinião publicada, e com abertura e tolerância para quem o consulta.
Sobretudo nas causas impopulares, quando o escritório de advocacia é o
último recesso da presunção de inocência.
É necessário reafirmar
os princípios que norteiam o Direito Penal e lembrar, sempre que
possível, que a liberdade do advogado é condição necessária da defesa da
liberdade em geral. A advocacia criminal, desafiada pela ânsia
repressiva, deve responder com firmeza. Alguns meios de resgatar o papel
que cumpre na efetivação da justiça estão ao alcance da sua própria
mão.
O primeiro passo deve ser investir num esforço pedagógico de
esclarecimento social acerca da relevância do papel constitucional do
advogado criminalista. Ele não luta pela impunidade. Também desejamos,
enquanto membros da sociedade, a evolução das instituições que tornam
possível uma boa vida em comum. Somos defensores de direitos
fundamentais do ser humano, em uma de suas mais sensíveis dimensões
existenciais: a liberdade de dar a si mesmo a sua regra de conduta.
Cabe
a nós zelar pelas garantias dos acusados e pela observância dos
princípios básicos do Direito Penal do Estado Democrático de Direito,
contra as tentações do regime excepcional que não deve ser aplicado nem
mesmo aos “inimigos na nação”.
É nosso dever de ofício acompanhar a
repercussão do julgamento que pretendeu abolir o habeas corpus
substitutivo, manifestando-nos sempre que possível para demonstrar os
prejuízos desse regresso pretoriano. A fim de restabelecer o prestígio
da ação constitucional, também se faz necessária a continuidade de seu
manejo perante todos os tribunais.
Especificamente com relação às
distorções que uma interpretação canhestra da nova lei de Lavagem de
Dinheiro pode instituir, é importante registrar que a imposição do
“dever de comunicar” não pode transformar os advogados em delatores a
serviço da ineficiência dos meios estatais de repressão. É contrário à
dignidade profissional ver no advogado um vulgar alcaguete.
É
evidente que essa condição não torna a advocacia um porto seguro para
práticas de lavagem de dinheiro, nem assegura a impunidade profissional.
Apenas permite o livre exercício de uma profissão essencial à Justiça.
Deve
ser louvada a recente decisão do Conselho Federal da OAB, segundo a
qual “os advogados e as sociedades de advocacia não têm o dever de
divulgar dados sigilosos de seus clientes que lhe foram entregues no
exercício profissional”. Tais imposições colidem com normas que protegem
o sigilo profissional, quando utilizado como instrumento legítimo
indispensável à realização do direito de defesa.
Ainda assim se
faz necessário o constante aprimoramento das regras éticas de conduta
profissional. Em paralelo, sugere-se a formulação de códigos internos
aos próprios escritórios de advocacia, com orientações, ainda que
provisórias, acerca dessas boas práticas, no intuito de resguardar os
advogados que se vêm diante da indeterminada abrangência da nova lei
repressiva.
Esses “manuais de boas práticas” devem ser elaborados
com vistas também a regulamentar uma nova advocacia criminal que hoje se
apresenta. A consultoria vem ganhando espaço cada vez maior na área
penal, em razão do recrudescimento das leis penais, seja pela
proliferação de regras de compliance que regulam a atividade econômica.
Para que haja segurança também na prestação desse serviço, é
imprescindível uma regulamentação específica.
“Participar e
defender”, em 2013, é a melhor maneira de responder aos desafios
lançados pelo espírito vigilante e punitivo exacerbado no ano que
passou. É renovar, como projeto, a aposta na democracia e na
emancipação, contra as pretensões mal dissimuladas de regulação
autoritária da vida social.
A repressão pura e simples não é
suficiente para dar conta do problema da criminalidade. Embora a efetiva
aplicação da lei ajude a aplacar o sentimento de insegurança, o Direito
Penal não deve ser a principal política pública.
Outras linhas de
atuação política devem ser prestigiadas. Pode-se pensar no controle
social sobre o Estado, por meio do aprofundamento das políticas de
transparência. Elas ganharam novo impulso com a promulgação de uma boa
Lei de Acesso à Informação, que está longe de realizar todas as suas
potencialidades de transformação criativa.
A prestação de contas
de campanha em tempo real foi um avanço inegável. Uma medida discreta,
mas eficaz, entre outras que podem ajudar a prevenir o espetáculo do
julgamento penal.
Deve-se mencionar também a necessidade mais
premente e inadiável de nossa democracia: a reforma política, com ênfase
no financiamento público das campanhas eleitorais.
Enquanto o
habeas ainda resiste, não podemos deixar de aperfeiçoar mecanismos de
controle de abusos de autoridade. A esfera da privacidade e da
intimidade das pessoas também carece de maior proteção jurídica.
Nossos
servidores públicos ainda esperam um sistema de incentivos na carreira
que recompense o maior esforço em favor dos interesses dos cidadãos.
A
simplificação de procedimentos administrativos e tributários, ao
diminuir as brechas de poder autocrático, pode desarrumar os lugares
propícios à ocorrência da corrupção que nelas se infiltra.
É legítimo travar com a sociedade um debate aberto sobre os meios para a plena realização do pluralismo de ideias e opiniões.
Enfim,
a educação para a cidadania, numa democracia segura dos valores da
cultura republicana, é tema que deve ocupar mais espaço na agenda
política de um país que não quer viver apenas sob a peia da lei
punitiva.
Na encruzilhada em que se encontra o Direito Penal
brasileiro, os desafios lançados pelo ano que passou só tornam mais
estimulante a nobre aventura da advocacia criminal. A participação
democrática e a defesa dos direitos humanos continuam apontando a melhor
direção a seguir. As dificuldades de 2012 só enaltecem a
responsabilidade do advogado, renovando suas energias para enfrentar as
lutas que estão por vir.
Como anotou um prisioneiro ilustre, a
inteligência até pode ser pessimista, mas continuamos otimistas na
vontade de viver um ano mais compassivo.